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domingo, junho 07, 2009 

Doce sorriso

De bunda na calçada, há horas, eu esperava alguém chegar com a bendita chave. É, a chave de casa não está comigo, está com a própria casa, apesar de a mim pertencer o molho de chaves, com um chaveirinho que minha mãe me deu. Mas não tem jeito, vivo esquecendo as chaves de casa e ficando do lado de fora.

Quase que justificando minha irresponsabilidade, não é de todo ruim ficar na calçada de vez em quando. As pessoas, os pássaros, o sol, o ar passeiam por mim - e é só então que, de fato, eu os noto.

Uma menina de cabelos presos dos dois lados da cabeça chamava a minha vizinha. Fiquei olhando a novela ao vivo. Nada de a vizinha vir, acho que a casa estava mesmo fechada, mas a menina parecia fingir não perceber; talvez para deixar sua insistência soar um pouco menos ridícula. Estava lá, gritando o nome da vizinha e batendo palmas.

Sentou na calçada, quase do meu lado. Finalmente me notou; quis deixar o sorriso escapar, mas o reprimiu antes que a expressão sorridente a dominasse, como se isso fosse mesmo uma derrota, como os adultos parecem entender que o é. Olhou o chão, a rua de calçamento, ainda. Espalhava areia com os pés, com sandalinhas rosa-choque. Parecia não se importar em sujá-la. Parecia mesmo era que melhor era sujar as sandálias a sujar a reputação, como se ela entendesse mesmo o que diabos é isso.

Virei o rosto pro outro lado, fingi que tinha algo realmente importante pra olhar ao oeste, e no fim de tarde, o sol o permitia gentilmente - não me cegava. Peça em quebra-cabeça é pra encaixar, mas só no lugar certo. Olhei, durante o que parecia ser muito tempo, para o oeste, mas eu senti que a menina ainda não tinha desistido. Da vizinha não, de mim. Eu que tentava dela fugir. Estava a vizinha fugindo? De repente, eu já não aguentava mais e surpreendi a menina com o meu rosto. Podia jurar que ela fingiria estar olhando o leste, mas, apesar do susto, ela se manteve olhando pra mim.

E eu fiz a coisa errada. Ou a coisa certa? Sorri. Mas não sorri de felicidade. Sorri porque implorava dela outro sorriso. Sorri para tentar escapar da angústia que já se tinha formado como nuvem densa nos céus que eu contenho. Não pensava em mais nada a não ser em ser correspondido.

Não sorriu. Passou-se tempo, eu, feito besta, segurando o sorriso na cara, como um pedido de paz, de um acordo, (uma rendição, talvez), eu tinha cedido, eu tinha sorrido. Mas, ficou apenas me olhando. Apertou os olhos quando, no oeste, o sol começou a chamar atenção ao fim do dia. Tive esperanças infantis quando a vi levantar as bochechas para espremer e proteger os olhos - estava cada vez mais perto do sorriso.

Desisti.

Olhei meus sapatos novos e quase começo a afastar com eles a areia da rua de calçamento. Mas eu sou adulto, lembrei; não podia. E como um alívio divino, a vizinha chegou, com uma sacola de compras, um beijo na testa da menina e pôs-lhe um doce nas mãos. A menina me olhou, sorriu: sorriu até que os dentes apareceram, até que os cantinhos sem dentes também aparecessem, num doce sorriso. Entrou na casa, desapareceu.

E eu? Soou como um trocado de misericóridia a um mendigo. Eu, que sempre soube não ter talento com crianças, dela mendiguei um sorriso, um carinho, uma reciprocidadezinha sequer. E a gente depois que cresce pensa que sabe tudo sobre viver em sociedade.

Conquistar pessoas é um dom.

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Querida sua escrita é fabulosa ! De um gabarito e refinar sem igual, confesso que estou de queixo caído viu !? Parabéns e continue assim !
Amei-te e estou te linkando para não perdê-la de vista.

Beijos mil

Priscila Cáliga

Oi Vanessa! Como sempre nos deliciando com seus textos, que aos pouquinhos vai nos envolvendo, e quando percebemos estamos vivendo a sua história...por sinal mto bem escrita, e até um pouco engraçada. Realmente temos tanto que aprender, e cada momento nos deparamos com coisas novas.
Quero agradecer pelos comentários feitos em Cezanne, e nas meninas de Velásquez, pois achei suas palavras tão lindas! Amei!
Bjocas
Waleria.

meninaaaaaaaa, tu escreve tão bem. fiquei impresionado. parabens mesmo. dava pra escrever pro jornal.

te linkei viu
abraçus

Oi Vanessa,nâo sei bem como cai no seu belissimo blog mas achei interessante.Continue assim,meiga!

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