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sexta-feira, abril 03, 2009 

Lixo

Eram leves os passos, ironicamente, era como pisar no céu. Mas o céu não seria motivo de vergonha. Com uma sacola na mão, uma leg azul, um camisão de uma publicidade qualquer, olhava como se esperasse que alguém a visse. Não esperava. Não queria ser vista, mas por isso mesmo achava que sempre atraía olhares. De ojeriza e, às vezes, até de curiosidade. Os poucos carros que rugiam na larga avenida a faziam mais invisível do que imaginava – momento perfeito, é agora.

Pisava cada passo como se ainda tivesse direito de ter algum nojo, como se fosse a primeira vez: não era. Sua sombra se projetava na calçada suja e ainda a culpava; sabia que aquilo era imundo, mas não tinha escolha. A sombra mudava de direção como se uma parte dela a quisesse culpar por aquilo, virando para um lado e outro procurando a face para olhar-lhe nos olhos e vomitar-lhe uma forte e calada acusação.

Mais dois passos e... já estava no meio, agora já é tarde, teve que começar o trabalho sujo; a fome, como um demônio, a forçava a tal e parecia rir de tamanha humilhação. Encurvou-se enfim. Tocou. Cheirou por obrigação, mas o costume agia como um vírus que o corpo já conhece: penetra-lhe o corpo, mas já pouco lhe importa. O lixo estendia-se por toda a esquina, a rua larga, isolada, a desembocar na avenida. Mas na avenida não tinha lixo: os carros o haveriam carregado, esmagado, estraçalhado, sem se aperceber. Carros, afinal, não sentem.

Pôs uma embalagem com restos praticamente putrefatos nas mãos. Não estavam de todo podres, e isso a animou. Hoje as coisas estavam melhores. Tinha carne numa manteigueira. Tinha biscoitos. Tinham muitas moscas com quem disputar, mas sou infinitamente maior que elas, então não tenho problema, exceto o zunir ininterrupto. E foi juntando uma, duas, três, quatro embalagens na sacola. Consumado – já não enxergava mais que estava numa rua, parecia estar no nada, catando frutas encantadas. Ou num supermercado, escolhendo frutas em promoção.

Pensou que ao menos não tinha filhos, e não precisaria, portando, dividir o pouco que conseguira aquela tarde, apesar de que foi melhor que outras vezes. Sou muito exigente. Teria pego mais, lá havia mais para pegar, mas eu não peguei. Pus só isso na sacola. E olhou para a imensidão: muito lixo na esquina. Não pensava nada, só via o lixo. E o sol de duas horas da tarde sentia queimar-lhe a pele também. Mas já não se importava, nego é forte, diria. Quis pegar mais, mas, subitamente, o nojo não lhe permitiu: é hora de comer, dormir e esquecer que espécie de bicho sou eu.

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Olá menina - Estou lendo aos poucos suas postagens e estou gostando mto...venha me visitar, fiz nova postagem.
Bjs.
Waleria.

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