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sábado, março 21, 2009 

A alma da casa

Antônia lavava roupas sob encomenda há vinte anos. Gostava de ser chamada de Toinha, só. Era chamar Toinha pra lavar a roupa e em cinco minutos, lá estava a baixinha de sorriso amistoso. Meio desconfiado, também, esse sorriso, mas isso era normal, patrão novo é assim mesmo. Os olhos pequenos e negros percorriam toda a casa, antes mesmo que alguém pudesse perceber. Ela via o cantinho sujo na parede, o tapete cheio de pó, os brinquedos espalhados, as crianças sujas, os cds no chão. Mas ia correndo pro quintal, ou pra área de serviço. Dependia do patrão.
Mais do que os detalhes, as sujeiras, os cantos, Toinha enxergava mais. Na verdade, sentia. Sentia a alma da casa. Apenas uma vez em toda sua história de lavadeira permanecera como diarista fixa. E não gostou. Tinha que suportar a convivência. E pior ainda era ter que suportar apenas a alma da casa, o clima carregado daquelas casas silenciosas e com tão pouca gente. Dia após dia. Desde então resolveu escolher um só serviço, pra não ter como ter um patrão por muito tempo: era só lavar a roupa e ir embora.

Tinha achado um máximo aprender a mexer na máquina de lavar, mexer naqueles botõezinhos. Era um absurdo uma coisa tão fácil, e mesmo assim a patroa ainda queria outra pessoa pra fazer aquele serviço. Mas ao menos nas casas em que tinha máquina de lavar, ela ganhava um pouco mais. Costumeiramente, apenas.

Gostava de visitar as casas esporadicamente. Era assim: uma casa aqui hoje e uma láaaaaaaaaa... acolá amanhã. Então todo dia era uma coisa nova. Não pôde ser aeromoça como tanto sonhou (ou, como é mesmo que minha filha disse que chama hoje... comissária de bordo!), mas, do seu jeito, todo dia era um lugar diferente. E todo dia era uma casa diferente.

Mesmo ficando por tão pouco tempo em cada casa, sentia a atmosfera de cada uma. Algumas alegres, outras estranhas, outras silenciosas, outras tristes, outras apertadas... Uma vez chegou numa casa tão, tão, tão triste e carregada que saiu de lá com dores nas costas. No fim do dia, a filha disse apenas que ela poderia ter lavado roupa demais, mas ela sabia: era porque a atmosfera da casa era demasiadamente pesada. Carregada. Como se houvesse milhões de mágoas e traumas mal-resolvidos e que a casa, coitada, tivera que absorver. E no fim desse dia, ela chorou. Chorou porque, porque... Ora, os problemas não eram seus. Mas a casa compartilhara a alma com Toinha, e Toinha chorou como quem chora ao ouvir um amigo. Ficou triste porque também não poderia fazer muito apenas lavando a roupa do pessoal da casa.

Entretanto, ficou pensando, na verdade, ficou querendo que o povo de lá vestisse a roupa tão bem limpa e passada que ficasse, por um momento sequer, contente, pra aliviar a alma da casa e de quem quer que ali entrasse.

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