terça-feira, março 31, 2009 

Tempo perdido

Veja o sol
Dessa manhã tão cinza
A tempestade que chega
É da cor dos teus olhos
Castanhos...

Então me abraça forte
E diz mais uma vez
Que já estamos
Distantes de tudo
Temos nosso próprio tempo
Temos nosso próprio tempo
Temos nosso próprio tempo...
Tempo perdido - Legião Urbana

Assim tocava o rádio da cozinha. A louça estava quase toda lavada, faltava muito pouco pra terminar. As mãos agora abraçavam com a esponja ensaboada os pratos castanhos. Um vidro castanho antigo, desde o casamento da mãe os tinha em casa.

Castanhos, abraça, distante... Eram as palavras que a mente dela agarrou, e que pareciam tentar fugir: ecoavam, vibravam no fundo do pensamento. E durantes alguns segundos, não sentia os pratos na mão; eram só as mãos quem sabia segurá-los. A mente, agora, segurou apenas essas palavras.

Os olhos dele eram castanhos. Mas eram mais que simplesmente castanhos, eram castanhos profundos, assim, translúcidos como os pratos. Eram tão profundos que quando olhava lá no fundo, só podia ver a íris castanha, porque de repente estava ela mesma distante, já não pertencia a lugar nenhum, a não ser àqueles olhos, que pareciam ser o mundo inteiro.

Imaginou, desejou estar realmente distante, lá longe, onde o céu ficasse de fato aberto, sem estar apertado por telhados, onde a chuva pudesse cair abundante e livremente, sem dar a impressão de que é um male apenas porque cai onde mal tem espaço, e não tem culpa de parecer sufocante. Tão longe que pudesse fechar os olhos e perder a visão daqueles olhos castanhos apenas por um beijo...

E a música acabou. Com um bonito instrumental - ela quase entrou num estado meditativo. Repentinamente, soltou as palavras na mente, e as mãos se reconectaram à mente. Achou ridículo estar em devaneios enquanto lavava a louça. Mas não achou que fosse tempo perdido - na mente escondia-se um pequeno paraíso. E os olhos castanhos eram o caminho para o Nirvana...

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terça-feira, março 24, 2009 

Chuva!


Vocês lembram como ano passado choveu pouquinho? Tão pouquinho, tão pouco, que eu passei o todo o primeiro semestre do ano esperando mais. "Ainda vai chover. No próximo mês chove pra valer.", eu tentava me conformar.

Para minha alegria e das plantinhas - e para a temporária tristeza de motoboys e transeuntes do centro da cidade (tadinhos) - este ano está sendo bem diferente. Já é outono (não sabia? desde de 20 de março, viu? Equinócioooo) e mesmo assim chove como se nada tivesse mudado. Morar perto do Equador é assim mesmo, coisa de sortudo. Afinal, não é todo país que fica assim tão pertinho.

Eu falava das plantinhas.

Aqui em casa a gente nunca teve planta. Quer dizer, não que eu me lembre. Sempre quis uma, e um gatinho também. Mas, sabe, aquela coisa, família tem que concordar, e tudo, ninguém queria nenhuma vida a não ser a nossa, (coisa triste). Só que desde a última reforma, tem um saco de areia no meu quintal. E de repente, nasceram três plantinhas. Lembro que, quando era criança, tentei plantar algumas vezes, mas sem muito sucesso. E agora, sozinhas, elas nasceram, sem que eu precisasse mexer um dedo.

Sem que a gente peça, a Terra está lá, ansiosa pra gerar vida. Hoje as mulheres estão cada vez menos dispostas a ter filhos - ah, a modernidade - mas a Terra é uma eterna mãe. A meninada, penso, quando se alegra num banho de chuva, compartilha a alegria da terra fértil. Imagino a cara de felicidade do povo que vive no Sertão brabo desse Nordeste, quando olha para cima e vê as nuvens como véus negros.

No interior, a crença do santo que intercede pela chuva, São José, ainda é forte. Se chove no dia 19 de março, o "inverno" (nosso verão/outono + chuvas) está garantido. Para susto dos Fortalezenses, aqui não choveu. Maaas, no interior choveu em Crateús, Camocim, aproximadamente 50mm.

Além disso, por volta de 19 a 21 ocorre o equinócio de outono. No Hemisfério Sul, quando é registrado o fenômeno, a linha que une o centro da Terra ao centro do Sol cruza o Equador. Paralelo, chove um dia antes ou depois do fenômeno.
(Quase comemoram Mabon?)

E neste ano há mais motivos para fazer a associação. Conforme prognóstico da Funceme, a segunda quinzena de março está tendo influência da Zona de Convergência Intertropical. O fenômeno motivo chuvas no semi-árido nordestino e pode indicar bom período chuvoso. Fora isso, as chuvas aqui também sofrem influência do resfriamento do Oceano Pacífico, caracterizando a presença do fenômeno La Niña.
Diário do Nordeste - 20/03/2009

Espero ver as frutas baratas, o povo feliz. A família, na casa da avó, chupando manga e ficando todo lambusado. E um suquinho de cajá no almoço, uma seriguela de sobremesa... Sem contar com os banhos de chuva. A casa, a cama quentinha, uma boa companhia no frio, um beijo na chuva... Coisa boa é chuva, né não?
Imagem: deviantart; OjosVerde

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sábado, março 21, 2009 

A alma da casa

Antônia lavava roupas sob encomenda há vinte anos. Gostava de ser chamada de Toinha, só. Era chamar Toinha pra lavar a roupa e em cinco minutos, lá estava a baixinha de sorriso amistoso. Meio desconfiado, também, esse sorriso, mas isso era normal, patrão novo é assim mesmo. Os olhos pequenos e negros percorriam toda a casa, antes mesmo que alguém pudesse perceber. Ela via o cantinho sujo na parede, o tapete cheio de pó, os brinquedos espalhados, as crianças sujas, os cds no chão. Mas ia correndo pro quintal, ou pra área de serviço. Dependia do patrão.
Mais do que os detalhes, as sujeiras, os cantos, Toinha enxergava mais. Na verdade, sentia. Sentia a alma da casa. Apenas uma vez em toda sua história de lavadeira permanecera como diarista fixa. E não gostou. Tinha que suportar a convivência. E pior ainda era ter que suportar apenas a alma da casa, o clima carregado daquelas casas silenciosas e com tão pouca gente. Dia após dia. Desde então resolveu escolher um só serviço, pra não ter como ter um patrão por muito tempo: era só lavar a roupa e ir embora.

Tinha achado um máximo aprender a mexer na máquina de lavar, mexer naqueles botõezinhos. Era um absurdo uma coisa tão fácil, e mesmo assim a patroa ainda queria outra pessoa pra fazer aquele serviço. Mas ao menos nas casas em que tinha máquina de lavar, ela ganhava um pouco mais. Costumeiramente, apenas.

Gostava de visitar as casas esporadicamente. Era assim: uma casa aqui hoje e uma láaaaaaaaaa... acolá amanhã. Então todo dia era uma coisa nova. Não pôde ser aeromoça como tanto sonhou (ou, como é mesmo que minha filha disse que chama hoje... comissária de bordo!), mas, do seu jeito, todo dia era um lugar diferente. E todo dia era uma casa diferente.

Mesmo ficando por tão pouco tempo em cada casa, sentia a atmosfera de cada uma. Algumas alegres, outras estranhas, outras silenciosas, outras tristes, outras apertadas... Uma vez chegou numa casa tão, tão, tão triste e carregada que saiu de lá com dores nas costas. No fim do dia, a filha disse apenas que ela poderia ter lavado roupa demais, mas ela sabia: era porque a atmosfera da casa era demasiadamente pesada. Carregada. Como se houvesse milhões de mágoas e traumas mal-resolvidos e que a casa, coitada, tivera que absorver. E no fim desse dia, ela chorou. Chorou porque, porque... Ora, os problemas não eram seus. Mas a casa compartilhara a alma com Toinha, e Toinha chorou como quem chora ao ouvir um amigo. Ficou triste porque também não poderia fazer muito apenas lavando a roupa do pessoal da casa.

Entretanto, ficou pensando, na verdade, ficou querendo que o povo de lá vestisse a roupa tão bem limpa e passada que ficasse, por um momento sequer, contente, pra aliviar a alma da casa e de quem quer que ali entrasse.

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quarta-feira, março 18, 2009 

Sheela Na Gig

He said Sheela Na Gig, Sheela na Gig
You exibicionist

- PJ Harvey

Hoje, dia de Sheela Na Gig, deusa irlandesa da sexualidade. Também pode referir-se a esculturas, que aparecem até mesmo como gárgulas em algumas igrejas e catedrais européias, para marcar-lhe o paganismo que tentaram engolir.

Pensar em Sheela Na Gig me faz pensar em que tipo de mulher nos tornamos (ou em que mulher acabei de me transformar). Pra mim parece muito óbvio que precisamos mesmo nos exibir - a sensualidade é inerente à aura feminina. É tanto que mesmo sob uma burkha, ainda somos um perigo: aquele olhar atrás daquela "redinha"... Entretanto nem toda mulher tem consciência de tamanho poder. Acho que, na verdade, passamos a vida inteira buscando por isso, como biólogos dedicam suas vidas inteiras a catalogar espécies, o que não deixa de ser-lhes uma tarefa interessante por saberem que nunca vão "concluir os estudos".

O arquétipo feminino está presente em basicamente todas as civilizações: venerado, temido, admirado, recebendo agradecimentos - é mais complexo do que os anos de nossas vidas podem contar. Isis, Astarte, Hecate, Diana, Ceridwen, Vênus, Afrodite...

Infelizmente nossa civilização pôs sobre esse poder um véu, e o pouco que se vê, pensa-se ser tudo. É barato ver mulheres nuas (virtualmente ou não), e poucas coisas são tão superficiais quanto o simples uso das faculdades femininas. Não raro, o papel da mulher resume-se à cama, à casa, aos filhos e alguns meses de trabalho secular.

Resumindo a história toda, quando vejo a Sheela Na Gig não penso em quão absurdo é uma criatura abrir as pernas e mostrar o que tem de supostamente mais íntimo. Penso que ela se abre sem medo de mostrar não só aos outros mas, especialmente a si mesma, todo poder que dela emana. A sensualidade, tanto poder disfarçado numa falsa aura de fragilidade, a sabedoria, como das velhas sacerdotisas e tanta luz quanto a lua cheia é capaz de refletir.

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segunda-feira, março 16, 2009 

Desejo

Tantas, e tantas, e tantas vezes ela esperou. Quis que acontecesse. Enchia os olhos: tantas cores, tantas possibilidades, o prazer de tê-lo nas mãos. Seria macio, seria ingualável, seria lembrado por gerações, atravessaria a imortalidade, se isso sequer pudesse entender.

Mas, oh, ela dependia. Tinha que pedir. Não, tinha que implorar, chorar, fazer um escândalo (como se nunca o tivesse feito, mas era assim mesmo vergonhoso, especialmente porque quase sempre era não apenas inútil mas ainda mais doloroso). Ah, ela sofria. Ultrapassaria a barreira? Ou não teria coragem? Ora, mas já a tivera, por que se esquivar? Se não o teria, ao menos faria seus dedos sentirem a aura que ele emitia, o quanto mais próximo possível conseguisse chegar.

Clara sonhava com aquele ursinho de pelúcia mais que tudo na vida. Apesar de que só deu tempo com ele sonhar por cinco minutos, o tempo desde que se afastara da vitrine. Nem sequer o tocara, mas podia de longe sentir, quase como uma clarividência, era doce, azul - não, rosa é melhor - macio, o toque daquele elefantinho. Cabe direitinho no meu colo, eu vou dormir com ele, não mais ficar sozinha, como meu pai tanto quer. Sim, há alguns fora arrancada da cama dos pais, sem nada ter feito.

A idéia - é isso! O toque do elefante, a companhia do elefante, era um golpe que o pai não imaginaria. Pensaria, pois, que era apenas um brinquedo. Mas era subverter a vontade, era dar a volta por cima, era a necessidade do urso. Era não também não precisar não dar explicações e ainda assim ter um cúlmplice.

E agora, mesmo que a voz não gritasse, a mente gritava, era seu destino possuir o elefante de pelúcia. A expectativa lhe era doentia, mordia os lábios enquanto continuava a andar de mãos dadas com o pai, olhando as outras vitrines, fingindo que ainda conseguia se interessar por outra coisa. Apertou os olhos, preparava-se para o esforço, para vomitar o nó na garganta, precisava pedir, pedir o elefante de pelúcia.

E quando abriu os olhos, não disse nada. Suspirou. E, de repente, o pai lhe pegara nos braços, e sim, era outra vitrine, muito pouco interessante. As roupas seguiam a silheta daquelas bonecas enormes, esguias, coloridas, os números, enfileirados, dançando logo embaixo.

Não teve o elefante naquela noite, mas sabia que não estava só, e isso lhe valia tanto quanto saber num reino cristão que Artur tivera um filho com a própria irmã: a mãe mordeu os lábios e apertou os olhos tal qual Clarinha.

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