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sábado, novembro 21, 2009 

Gatinhos azuis

Meio assim, meio assado, ficou de canto. Nem ria, não estava séria. Estava, apenas. Tinha o nada estampado na cara, uma máscara que tornava invisível o rosto, a expressão, o pensamento: tudo mudo.

Primeiro dia de aula é sempre assim? Não. As meninas e meninos berravam querendo as mamães de volta, o mundo as roubara, não, pior ainda, as mães abandonavam os filhos... Mas ele ficou ali sentado esperando. O que eu não sei, nem ele mesmo sabia, sabia que esperava só. A paciência é um exercício praticado com excelência especialmente na ignorância, tanto quanto é frio o prato da vingança.

Ninguém dizia seu nome, então pra quê se levantar? Tinha as perninhas cruzadas. A tia tava por demais ocupada controlando os berros, tentando transformá-los em respostas unânimes: o abecedário era aos poucos desenhado na lousa, e os choros apagados. O "a", pessoal, vamos lá, digam: "aaaaaaaaaaaaaaaaaaaa". Cá e lá se ouvia cada vez mais juntinhas as vozes agudas de árvores-de-flores-de-primeira-viagem: "aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa". E a tia sorria. De repente, uma palavra.

A palavra, o mistério, o desconhecido conhecido, o código repetido e não decodificado. Intacta, a palavra na lousa. Jean tava tentando sintonizar onde todo mundo estava, onde ele mesmo estava no todo mundo. E foi só depois que a palavra apareceu que ele se encontrou: se achou na palavra, luz irresistível.

Gato!

A palavra ecoou na sala. Bofetou cada aluno, estardalhou a tia, a tia que já não sabia mais o que fazer. Que diabos um alfabetizado faz nesta sala... A tia ralhou em silêncio. Coitada: tentava explicar ainda por que havia um um "a" na palavra, por que um "g", um "t", um "o". Mas o fim: Gato. Jean espalhou as cartas na mesa, um straight flush. A professora não sabia, mas havia apostado que todo mundo era analfabeto, que ela não era todo mundo. Não fazia parte, por isso não estava ali, não sintonizava com a criançada.

Contudo, não se deu por vencida. Loirinho, que menino brilhante! Vem aqui! Jean não sentia o cheiro bom do pedido da tia, mas foi sem ser atraído. Foi sem contrariar, como se ainda estivesse com as perninhas cruzadas intactas.

O gato era azul: fizera assim ser a frase a ser lida no quadro. A sala caiu na risada geral, a professora em pele de maestro. Azul, loirinho, tem certeza? Azul, azul da humilhação. Meu nome é Jean, tia, e não loirinho. Azul porque eu pintei o gatinho. Pode pintar tudo que eu quiser. O poder de pintar é meu. Vamos pintar gatinhos azuis?

A meninada lembrou os lápis-de-cor. O encanto: as cores, as formas, os desenhos, o poder, a vida: era deles, sim! O gato podia ser preto, roxo, azul, vermelho, à moda de cada criador. Começou um festival de abre-bolsas, pega-lápis-de-cor, arranca-folha-de-caderno. A tia queria arrancar os cabelos.

Mas percebeu que era bom ter poder o suficiente para distribuir: havia de prender o poder da palavra ao da imaginação. E era bom deixá-los pintar gatinhos azuis.

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Olá menina! Gostei mto da postagem, mto interessante, e serve como lição, até por achar que sabemos tudo, quando estamos sempre aprendendo...
A postagem mostra abertamente, como é importante, a criatividade e o poder de fazer com que isso aconteça, de forma livre e consciente.
Bjocas.
Wal.

para Jean, a escola se resumiria a tias tentando domar seus pensamentos e fazer com que ele escreva e pense coisas que, segundo elas, e apenas elas, existem. se o gato dele é azul, elas que se contentem com os demais gatos. um beijo!

oi, espero vc no meu espaço, pois fiz uma postagem mto interessante sobre tatuagem...te espero lá.
Bjos.
Wal.

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