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segunda-feira, maio 03, 2010 

Lucimar

Na xícara de café, Lucimar era o fim. Era o que era sentada, bolacha cream cracker na boca. E mais um gole de café. Ninguém dela teve dó. Na areia preta da praia perto de onde morava, Lucimar via a poluição representar seu estado deprimente. Era toda saudade, saudade sem alcance e sem sentido, sem fim, sem rumo. Saudade da vida que não volta. A vida dele. Carlos fazia tempo havia deixado a casa, e desde então o cheiro de mofo era a única coisa que, pelo menos em tempo de chuva, servia de companhia à pobre Maria. Seu arroz ainda era a mesma delícia, seus bolos, também. Os filhos, piores ainda, céus: o mesmo de sempre. Uma vez no ano, dia das mães. Os mesmos presentes.

Cinema preto-e-branco tem graça, mas apesar de que a vida dela era colorida e 3d, pouco fazia sentido, quiçá gargalhadas. Sabia das fofocas da vizinhança, e quando as outras mulheres depois dos 50 pareciam querer dar-lhe alguma atenção ao contar alguma meia-verdade sobre a vida alheia, sentia-se pouco mais útil.
A praça, pelo menos, era bonita. Era seu lugar preferido da cidade. Cidade costeira, mas no ritmo do interior: pacata, graças a deus e a nossa senhora uma padroeira qualquer de que ela já nem lembrava mais. Lembrava que quando a mãe lhe trouxera à missa pela primeira vez, levara um susto enorme quando o sino tocou bem na hora em que as cores das flores a distraíam, levando-a para outra dimensão. Santa ciumenta, essa. Desde então decidiu que não teria mais intimidade com essas santas não, mas que coisa. E voltando à praça, sempre foi florida, e quando chovia ficava mais bonita ainda.

Lucimar terminou o café.

Era domingo, dia das mães. Toda a minha vida foi um dia só, pensou. E decidiu (como quem decide ficar de mal da santa) que não queria mais vidinha dessas não. Foi até a praça. Os filhos certamente iriam à sua casa, bem nesse fim de tarde. Primeira pergunta: vão me procurar? Resposta: danem-se. Quero que se danem mesmo quando chegarem lá e encontrarem no ar o cheiro da minha ausência. Não o cheiro da saudade, apenas, da decepção. Vai feder, até. E ficou sentada no banco da praça. Admirou as flores, como apenas se dera ao luxo de fazê-lo quando ainda era muito jovem, jovem o suficiente para achar que o mundo é só o que seus olhos escolhem ver, uma coisa de cada vez. Tão vermelho, tão branco, tão rosa... quanto a paz que invadia seus pulmões.

O terror a perseguia, porém. Além do sino, a imagem do Cristo sangrando numa cruz baixa, talvez para ficar na cara de quem no banco senta. Talvez como um desafio pra ver quem ainda sente paz ao olhar para o outro lado e ver aquela imagem horrível. Lucimar pensou no sofrimento daquele pobre coitado e chorou, sentiu culpa, pena e vergonha. Mas por que diabos botam um negócio desses pra atormentar a gente?! Virou o rosto, o Cristo tinha que entender que não era por mal que lhe dava as costas.
- Senhora táqui faz tempo?

Assustada, Lucimar olha. O maltrapilho se dirige a ela, ela de olhos arregalados.

- Tô não moço, e você?

- Também não. Deve ta distraída, né?

- Só to sentada, tomando um ar. Quis sair de casa.

- A senhora tem razão. Apesar da chuva ta muito quente.

Seguiu-se algum tempo incontável: conversas sobre o clima, o suficiente para gerar intimidade. Só que Dona Lucimar não sabia lidar muito bem com intimidade. Intimidade tipo amizade, digo. Seu Carlos era seu amigo profundo, mas tão profundo, que se comunicavam em silêncio. E era o silêncio que culpava Lucimar, dia, noite, tarde e mesmisse...

- Escuta, seu mocinho: não sabia que tinha mendigo aqui não. Seu trabalho te suja tanto assim?

- Me suja por fora, me limpa por dentro. Bato no peito com os calos da mão e digo que trabalho. Naquela casa, ali em cima, ta vendo? Tão reformando.

- Meu nome é Lucimar (ousadia).

- Osmar.

- Bonito. É daqui mesmo?

Mal sabia dona Lucimar... Não era dali, era da capital. Mas de dona Lucimar em diante, veio de lá pra na praia ficar mesmo. Não naquela, mas dois anos depois numa praia mais limpa. Osmar fez D. Lucimar vestir maiô de novo! Sorrir de novo! E, tomar café com alegria. E, ver nas flores sorrisos, em vez de sacrifícios.

E vida nova em vez de mesmisse.

Até a novidade inevitável fatal.

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