segunda-feira, junho 06, 2011 

Clara

I

Grito, semente de Deus. Vivo como água, inorgânico, porém. Liberdade, prisão do espírito. Correr num campo aberto, cair em qualquer lugar, porque qualquer lugar é sem fim, é bebida que não acaba, é a morte da sede, é futuro: é ogrito com pés feito centopéia e pernas de veado. Permites, Deus? Tanta fome comida... Veloz, voraz, assusta o fim e foge como fogo: intenso parasita em movimento na floresta que chora fumaça. Ah, seiva da vida era Clara, era tudo que queria ser. Clara abriu a janela ao acordar e respirou, soberba, o dia que ninguém ainda viveu. Viu o sol, olhou-o nos olhos e enxergou-o ainda mais: era a primeira violação do dia, toda violação era ela. Alguém ligava, ela mal olhava o telefone, estou tomando café: mamão e bolacha. E leite feito de seis colheres de leite em pó em metade de um copo de água. Tinha que ser leite grosso, firme, self confident, decidido.

quinta-feira, junho 02, 2011 

Consultório

A história tem que começar assim: era segunda, nove horas da manhã, não em ponto porque o relógio atrasou. Camila estava toda gorda de alma, tonta de felicidade, os olhos castanhos azuis de alegria. Ia ao médico com a tia, quer era meio tímida, mas era adulta, dizem. Naquele momento, toda arrumada e cheirando a loja de perfume, Camila estava extasiadamente faltando aula aos dezoito anos - para ir ao médico, poderia dizer, orgulhosa, a quem o quisesse saber.

Entrou na clínica, cheiro de álcool por todo canto, era sufocante. A felicidade, doce como café, engana. Aguardava num misto de ansiedade de não-sei-o-quê com medo e dúvida: por quê? A consulta, marcada há três meses, já tinha se perdido no tempo, deixado apenas rastros arenosos na lembrança de sua própria razão de ser. Como a própria Camila. Sem que nada seja nato, próprio: apenas o é, Camila pensaria, pois, pelo menos até então não pensava muito.

Pensamento perdido, sentada na cama do consultório - já. Olhos fixos na brancura. Jaleco, parede, papel, pele. Sim, a pele do médico era branca, e apesar de o hospital ter seus pedaços à mostra, Camila enxergava um clarão dissipado em cor branca: parecia misericórdia aos olhos para que estes pudessem tocar em volta. Mas o cabelo - ah, o cabelo era preto. Preto e liso como crina de cavalo. Havia nele um quê de leveza, que Camila mal saberia descrever, além de dizer que ele era bonito assim como o era. A tia no canto da sala, esperando humilde como táxi pago.

Camila, porém, não o ouvia. Sentiu-o levantar seus braços. Podia ler em seus lábios (ou completar-lhe a fala com devaneios - perdida?) dizer: “respire” e estendendo um leve toque deslizar até sua mão ele lhe abaixou os braços e pôs-lhe o estetoscópio no seio, nas costas, repetindo o mesmo comando.

Silêncio,

o médico a deixou no abismo do silêncio. Nem tempo, nem espaço, nem o branco existia, apenas nada. Existência questionável, lembranças distantes apagadas ou embaçadas. O médico lhe toca o queixo e a liberta. E prende-a novamente: puxa-lhe o queixo e beija Camila levemente nos lábios. Violada: sua felicidade havia sido banhada em veneno, rasgada aos pedaços, e já não era mais felicidade, era trapos, era excitação, vergonha, orgulho, medo, solidão: a tia perdida e fragmentada, dissolvida no ar.

E agora Camila tinha uma vitóriazinha escondida numa caixinha no peito: não podia aceitar que alguém permitira isso, o beijo, meu Deus, o beijo, os lábios doces de uma beleza desconhecida, enquadrada em pele branca e cabelos pretos lisos de um homem qualquer. Restou a chama, ninguém havia jamais atraído essa pequena (ou grande ousadia), assim como ninguém que ela soubesse havia silenciosamente permitido a violação moral: médico beija paciente em consultório. Assim a vitória cresceu, a caixinha não coube mais tanta excitação.

Impaciente, Camila mexeu-se na cama, perdeu a tia, o lugar e voltou para casa depois de uma noite incomum, pois há tempos não sonhara. E guardou o sonho com o prazer de quem guarda um segredo sem contar pra ninguém: para que ele exploda e transborde e flua vez após vez dentro de si mesma, dando-lhe longa vida, até ter pontas brancas e morrer.

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